Pai,
Eu não lembro, mas me contaram que você convenceu a minha
mãe a voltar do Perú para eu nascer brasileira e pertinho de você. Sei que
lavava as minhas fraldas, que disputava com a minha mãe empurrar o meu carrinho
de bebê. Não sei se é uma memória inventada: aprendendo a andar, eu ia da minha
mãe pra você e voltava pra ela, no calçadão do Leme. Uma das minhas primeiras
lembranças é acampando com você e minha mãe. Lembro que você andava rápido e eu
me sentia privilegiada de andar ao seu lado, quase correndo. Eu dizia que seria
muito, muito alta: do tamanho do meu pai! Lembro quando você chegou com o TL
vermelho de 4 portas, me disse que era um presente para a minha mãe, me deixou
sentar no seu colo e dirigir e me levou com você para pagá-lo. Lembro que
gostava que eu te presenteasse com meus desenhos. Uma vez, eu tinha te dado um
desenho e depois resolvi dá-lo a um amigo seu e você me explicou que não se
pode dar a alguém o que já se deu a outra pessoa. Eu adorava ir a sua oficina
de móveis. Eu achava muito engraçado que você ronronava quando eu fazia
massagem. Lembro que ficou feliz uma vez, quando reconheci que quem cantava no
rádio era a Elis Regina. Lembro que você fazia gemada e, ao ouvir o barulho da
colher batendo no pirex, eu e os meus irmãos corríamos todos para comer. Quando andávamos juntos na
calçada você me mantinha do lado de dentro, longe dos carros. Íamos às
cachoeiras, mergulhávamos em rios. Eu e meus irmãos adorávamos quando você nos
levava para o fundo do mar, às vezes todos no mesmo colo, apesar do seu medo de
água fria. Teve uma época em que eu queria ser sapateira, como meu pai. Depois,
passeia a não gostar dos seus cabelos e barba compridos, nem das roupas de
algodão branco bordado com ponto cruz que usávamos, nem dos sapatos de crochet .
Diziam que eram de hippie e eu não gostava de ser hippie. Tinham 3
"Arthures" na cidade e você era o "Arthur hippie", mas me
explicava que não era hippie e o que eram os hippies. De vez em quando, você
fazia mexidos deliciosos, fazia hamburguer de carne moída! Uma das minhas
lembranças mais feliz é de um dia em Rio das Ostras que nós, o Louro e o Miguel
passeávamos de carro, ouvindo Gilberto Gil, cantávamos e batíamos palma e você
soltava o volante e batia palmas também. Em casa, você apagava a luz no
interruptor e soprava a lâmpada e nós fingíamos que acreditávamos que você
tinha apagado com a boca. A mamãe não gostava que você fizesse este tipo de
coisas. Você me ensinou como comer mais goiabada, tendo apenas um pedaço:
"dividindo em 2", claro! Eu sentia vergonha quando você beijava a
minha mãe. Não sabendo o que fazer, me metia entre vocês para atrapalhar. Lembro
quando comprou o som para a nossa casa e trouxe uma fita do Pluct Plact Zum que
eu ouvia sem parar. Nós esperávamos ansiosos pela sua volta quando viajava.
Reconhecíamos o ruído do seu carro e corríamos para recebê-lo com o rosto
colado na porta de vidro de uma das casas que moramos. Fazíamos bagunça juntos,
pulávamos nas almofadas. Você ensinou a mim, ao Lourenço e ao Miguel a nadar no
mesmo dia, na piscina da casa do vovô. Me ensinou a andar de bicicleta e a
soltar pipa. Quando a mamãe viajava você nos deixava fazer tudo errado: comer doce, dormir tarde... e eu me
sentia sem chão. Você não gostava quando eu organizava a sua oficina, dizia que
depois não encontrava nada. Você fugia dos meus irmãos pela janela para jogar
futebol. Às vezes, você os levava e uma ou outra vez me levou também. Íamos
pelo meio do mato, beirando o rio, passávamos pelo matadouro: um mundo novo que
eu ia descobrindo. Você fazia gol e dizia que era pra mim. Me levou para
pescar. Adorava ouvir você falar dos livros, dos escritores, sobre história,
política. A melhor coisa do mundo era quando você recitava poesias, algumas
imensas! Quando você estava, os lanches eram muito mais divertidos. Gostava
quando tínhamos conversas sérias e você falava como se eu não fosse pequena
demais para entender. Lembro que você não sabia de cor as nossas idades, nem em
qual série cada um estava. Isso me indignava. Teve um aniversário seu, você estava viajando, mas
iria chegar, era óbvio. Eu e a minha mãe preparamos a festa, eu fiz pasteis,
que ficaram folheados para o meu orgulho, mas você só chegou no dia seguinte.
Mesmo assim, festejamos com fogueira e com os seus amigos. Sei que você viajava
muito, mas não sembro de sentir saudade doida, nem de você ser ausente, apesar de não
lembrar de você nos dando banho, comida, colocando para estudar. Essas eram
tarefas que a mamãe fazia com tanta maestria que parecia que só ela podia
fazer. Inclusive, dentre tantas coisas boas que você fez por mim como pai,
escolher uma mulher tão mãe para ser nossa foi um grande mérito! Tenho muitas
outras boas lembranças, mas estas aqui escritas são o meu presente de Dia dos
Pais pra você.
Luca, com meses, curtindo o colinho do vovô Arthur.
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